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Herança Digital – Direito Sucessório – Declaração de Última Vontade

  • Foto do escritor: Rogerio Meceni
    Rogerio Meceni
  • 3 de set.
  • 8 min de leitura

03 de setembro de 2025.

Leonardo Perseu

Advogado

@perseu.adv





O tema herança digital está ganhando cada vez mais relevância no Brasil, porque hoje quase todo mundo deixa um “espólio” que vai muito além de bens físicos: perfis em redes sociais, arquivos em nuvem, criptomoedas, canais no YouTube, domínios de sites, fotos, vídeos e até contratos armazenados em dispositivos.

De fato, o espólio digital é uma realidade inevitável e, muitas vezes, subestimada. A vida conectada que levamos faz com que, ao falecer, deixemos um rastro de bens e dados que podem ter valor econômico, afetivo e jurídico.

Os bens digitais são, em regra, incorpóreos, mas podem estar armazenados em suportes físicos (dispositivos), o acesso depende de senhas, chaves criptográficas ou autorização de plataformas, os termos de uso de serviços on-line podem restringir a transferência ou acesso por herdeiros, e, mesmo após a morte, dados pessoais e de terceiros são protegidos por lei.

De um modo geral, a doutrina brasileira subdivide os bens digitais em duas grandes categorias, ou seja, pela natureza jurídica (patrimoniais, existenciais/afetivos e híbridos) e a forma de manifestação (conteúdo, conta e dispositivo(s)).

Os bens digitais patrimoniais possuem valor econômico mensurável, podem gerar renda ou ser vendidos e integram o acervo hereditário como qualquer outro bem de valor, como por exemplo as criptomoedas, NFTs, domínios de internet, canais monetizados no YouTube, lojas virtuais, licenças de software transferíveis.

Já os bens digitais existenciais ou afetivos possuem valor sentimental ou identitário, não possuem cotação de mercado e podem envolver direitos de personalidade e privacidade, como por exemplo os perfis pessoais em redes sociais, álbuns de fotos em nuvem, e-mails, blogs não monetizados e as mensagens armazenadas em aplicativos (whatsapp, telegram, etc.)

Por fim, os bens digitais híbridos misturam valor econômico e afetivo e exigem uma análise acurada, caso a caso, para definir sua transmissibilidade, sendo exemplos as contas de redes sociais com grande número seguidores e monetização, blogs com publicidade, canais de streaming com receita. Não podemos esquecer ainda os arquivos de texto, áudios, vídeos, imagens, bases de dados e os códigos-fonte.

Devido a tamanha complexidade, o desconhecimento do assunto por boa parte da população, a inexistência de lei específica e precedentes sólidos de como se dá a transferência desses bens, precisamos refletir cuidadosamente levando em consideração a vontade da pessoa falecida, as regras de direito hereditário/sucessório e as normas de proteção de dados e privacidade, não só do falecido, como também de terceiros.

Pois bem, no Brasil, os direitos legais sobre herança digital ainda estão em construção — não existe uma lei específica que trate de forma abrangente sobre o tema, mas já há fundamentos jurídicos, decisões judiciais e projetos de lei que moldam como esses bens deverão ser tratados.

O Código Civil não menciona expressamente bens digitais, mas o art. 1.784 estabelece que a herança se transmite, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários. A doutrina e a jurisprudência vêm interpretando que isso inclui ativos digitais.

Em 2022 na IX Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (CJF) o tema foi tratado e publicado o Enunciado 687 reconhecendo que: “O patrimônio digital pode integrar o espólio de bens na sucessão legítima do titular falecido, admitindo-se, ainda, sua disposição na forma testamentária ou por codicilo.”

Já a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) deixou claro que a lei não se aplica a dados de pessoas falecidas, mas a proteção da intimidade post mortem continua sendo um princípio relevante não só para o falecido (memória) como também terceiros que, eventualmente, podem ser atingidos direta ou indiretamente em caso de acesso aos aplicativos de mensagens ou e-mails, por exemplo.

Em que pese a profundidade do tema, na minha modestíssima opinião o que deve prevalecer é manifestação expressa de vontade livre (sem vícios), informada, inequívoca e explícita da pessoa que, obviamente, goze plenamente de suas faculdades mentais.

Nesse contexto, as formas mais seguras de externar a vontade de forma livre sobre os bens digitais são as declarações expressas de última vontade - o codicilo (que é um ato de última vontade, mais simples e menos formal que o testamento, usado para registrar disposições específicas e de menor relevância patrimonial) e o testamento, mas vamos ao

ponto nodal da questão, ou seja, para quem e como poderá se dar a transmissão dos bens digitais.

Em 12/08/20205 a 3ª Turma de STJ começou a analisar um caso inédito sobre a possibilidade de acesso, no inventário, a bens digitais armazenados no computador de uma pessoa falecida.

Após o voto da Ministra Relatora Nancy Andrighi que se posicionou no sentido de determinar o retorno dos autos ao 1º grau de jurisdição, onde deverá ser instaurado um incidente processual de identificação e classificação dos bens digitais, o processo foi suspenso por pedido de vista do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.

A ministra relatora entendeu que um inventariante digital especializado deverá ter acesso ao conteúdo do(s) dispositivo(s), sob sigilo, apresentar lista minuciosa ao juiz a quem caberá, de forma exclusiva, definir quais bens são transmissíveis e quais devem ser preservados por envolver direitos da personalidade.

Como já dissemos, não há precedentes no Direito brasileiro, nem doutrina consolidada sobre tal procedimento, sendo uma matéria novíssima e objeto de discussão na proposta de alteração do Código Civil.

Na Europa, mais especificamente na Alemanha, em 2018 o Tribunal Federal de Justiça (Bundesgerichtshof) decidiu que a conta do Facebook de uma adolescente falecida, deveria ser transmitida integralmente aos pais, aplicando o mesmo princípio do direito sucessório que vale para cartas e diários.

O Tribunal alemão considerou as cláusulas do Facebook que limitavam a herança digital como inválidas e equiparou o conteúdo digital a diários ou cartas físicas, que tradicionalmente são herdados.

Além disso, em uma decisão posterior (2020), o mesmo Tribunal determinou que o acesso concedido deve ser o acesso efetivo (login), da mesma forma que o falecido tinha, e não apenas um arquivo de dados, isso demonstra que a Alemanha prioriza o direito sucessório sobre as restrições de privacidade das plataformas. Mas onde fica a privacidade

do falecido?

Já na Itália, em 2021, os de Tribunais de Milão e Bolonha, ordenaram à Apple que fornecesse acesso a dados dos iPhones de filhos falecidos. Eles usaram o Código de Privacidade italiano e interpretaram o RGPD (Regulamento Geral de Proteção de Dados da UE) como compatível com o acesso hereditário, especialmente por “razões familiares meritórias”.

Na Suprema Corte de Massachusetts (EUA), os irmãos de um falecido conseguiram acesso aos seus e-mails do Yahoo!. A corte decidiu que o representante legal poderia ter acesso e que os Termos de Serviço do Yahoo! não poderiam se sobrepor aos direitos sucessórios estaduais, isso demonstra que, em alguns casos, as cortes americanas permitem que o representante legal atue pelo falecido e como as leis estaduais podem prevalecer sobre os contratos das plataformas.

No Brasil ainda não há um consenso sobre o assunto e como já dito nenhum precedente de cortes superiores, mas nas cortes estaduais temos algumas decisões nos Tribunais de Justiça de São Paulo, Minas Gerais e DF.

Em 2017 o TJ/SP negou o acesso a conversas de WhatsApp fundamentando na inviolabilidade da intimidade e da privacidade das comunicações de acordo com o Artigo 7º do Marco Civil da Internet, ponderando ainda que as mensagens envolviam a privacidade de terceiros que não autorizaram a divulgação.

Em outra decisão o mesmo Tribunal negou acesso à conta ICloud, mas o STJ, em um caso similar, concedeu acesso parcial, reconhecendo o “direito à memória afetiva”, contudo, ambos os tribunais reforçaram a necessidade de um testamento digital para evitar litígios e garantir a vontade do falecido.

O TJ/SP permitiu que o perfil do filho falecido fosse transformado em memorial, mas negou o acesso ao conteúdo privado, a decisão tentou equilibrar o respeito a memória e preservar a privacidade póstuma (não acesso ao conteúdo privado). Neste caso, o tribunal balanceou o direito à privacidade e os termos de uso da plataforma.

Em outro processo, uma mãe processou o Facebook após a exclusão do perfil da filha falecida, o TJ/SP negou o pedido de indenização e concluiu que o que deveria prevalecer era a vontade expressa da filha, que ainda em vida, optou pela exclusão da conta após sua morte, ao invés de transformá-la em memorial, isso reforça o peso que os tribunais brasileiros conferem às declarações de vontade expressas dos cidadãos e as livremente aceitas pelos usuários nos Termos de Serviço.

O Tribunal de Minas Gerais divergindo do TJ/SP e reforçando a proteção da intimidade, negou o pedido em um inventariante para desbloquear um dispositivo Apple e acessar fotos e correspondências em nuvem, tal decisão priorizou o direito à privacidade e personalidade do falecido, reforçando a distinção entre bens digitais patrimoniais (transmissíveis) e existenciais (intransmissíveis neste caso).

Já o Tribunal de Justiça do Distrito Federal em 2022/2023 autorizou uma mãe ter acesso às fotos, vídeos e conversas do celular e Apple Watch da filha falecida, sendo destacado pelos desembargadores o valor sentimental das informações para justificar tal acesso.

E em 2024, a mãe de uma filha falecida conseguiu junto ao TJ/SP o direito de acessar o ID Apple da filha para recuperar fotos e vídeos, o tribunal reconheceu que o patrimônio digital, com seu conteúdo afetivo e econômico, pode sim integrar o espólio. A decisão ponderou que a falecida não havia deixado nenhuma instrução proibindo esse acesso.

Este caso mostra uma tendência a reconhecer o valor emocional e permitir o acesso quando não há vontade contrária expressa.

Pois bem, se por um lado podemos verificar que a jurisprudência brasileira ainda engatinha na busca de um consenso ou equilíbrio entre a privacidade póstuma, o direito sucessório dos herdeiros e as manifestações de vontade expressas dos falecidos, seja em declarações (última vontade - codicilo ou testamento) e nos Termos de Uso das plataformas, desde que tal manifestação seja induvidosamente livre; em países como Alemanha e EUA já há precedentes fortes ou legislações que tendem a favorecer o direito sucessório ou a vontade expressa do usuário, muitas vezes se sobrepondo as políticas das plataformas.

Para a Professora Karina Nunes Fritz, uma das maiores especialistas no assunto, impedir a herança digital é deixar o patrimônio mais existencial do ser humano nas mãos das plataformas digitais, prossegue ressaltando que: “não é necessário disciplinar a matéria especificamente: a legislação estabelece que todos os bens do falecido vão para os herdeiros, e não faz sentido excluir da regra o conteúdo digital. O inverso - a negativa de transmissão - só deveria ocorrer se a pessoa deixar expressa essa proibição.” (vide entrevista a site Migalhas em 13/05/2025 (Novo Código Civil pode entregar herança digital às plataformas, alerta Karina Nunes Fritz)

Conclusão, a herança digital já é parte inevitável do direito sucessório e exige equilibrar dois pilares: a transmissão do patrimônio, a vontade expressa e a proteção da intimidade após a morte.

No Brasil, sem lei específica, o caminho mais seguro é planejar — por testamento ou codicilo — o destino de contas, arquivos e ativos virtuais, indicando quem poderá acessá-los e em que condições, adotar uma postura mais cautelosa, modulando o acesso conforme a natureza do bem e a vontade do falecido é um caminho a ser trilhado e na minha modestíssima opinião o mais justo e em conformidade com a vontade do falecido.

Mas a lição comum é clara: manifeste sua vontade em vida (!!) e use as ferramentas de legado das plataformas para evitar litígios e garantir que o espólio digital reflita a sua vontade, identidade e valores.


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Leonardo Perseu

Advogado

Consultor

Conselheiro Municipal (Rio de Janeiro) de Proteção de Dados e Privacidade

Membro da Comissão de Proteção de Dados da OAB/RJ

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